*A Suite do Caldeirão estreou com grande público em Juazeiro. Neste sábado tem mais, 19h, no Crato, e neste domingo, 18h, em Fortaleza*
A Suite do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto estreou com grande público em Juazeiro do Norte e com muita, muita emoção na Praça Padre Cícero. Neste sábado tem mais, às 19h, no Crato, no Centro Cultural do Cariri, que acaba de completar dois anos de atividade. E neste domingo o espetáculo, que reúne mais de 50 artistas, em sua grande maioria do Cariri, chega a Fortaleza, em apresentação única às 18h, no belíssimo Cineteatro São Luiz, com ingressos gratuitos distribuídos a partir de 15h.
Os aplausos de pé à estreia do espetáculo, na noite desta sexta-feira, 10/5, na Praça Padre Cícero, evidenciavam a conexão que se conseguiu criar entre quem estava na plateia - com um público numeroso e atento, em pleno começo de final de semana nesse espaço referencial de Juazeiro do Norte, para o encontro de muitas tribos. Desde uma manifestação de docentes e estudantes em greve, das universidades federais, até religiosos buscando arregimentar novos fieis, passando pelo cidadão e pela cidadã que apenas procurava relaxar após a semana árdua de trabalho, sentando para uma bebida, um jantarzinho, um tira-gosto, nos restaurantes e barraquinhas que compõem uma verdadeira praça de alimentação na Praça Padre Cícero.
A rotina do local, sempre movimentado por um ror de gente em todas as direções, foi quebrada pela presença do palco em que seria encenada a estreia da Suite do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, projeto de Pingo de Fortaleza e Rosemberg Cariry, que reúne mais de 50 artistas no palco - mais de 90% deles, nascidos e/ou atuantes na região sul do Ceará. Desde cedo a montagem do palco, da iluminação, da sonorização, do espaço com cadeiras para receber o público chamava atenção e suscitava perguntas sobre o que ali iria acontecer.
Na passagem de som, desde o final da tarde, já era possível antever que se tratava de uma reunião de muitos, muitos nomes, para relembrar o Caldeirão, contar seu drama mas também conjugar as belezas desse histórico episódio do povo organizado e resistente, refletir sobre seus significados no Brasil de 2024, em que, como ressaltou João do Crato, responsável por conduzir o espetáculo com as falas antes de cada movimento da suite, hoje se faz presente no MST, nos movimentos sociais, na força do povo que luta por uma vida digna e por menos injustiça e exclusão.
O Coral da UFCA e o Sexteto de Cordas da Vila da Música chegam com nada menos que 37 integrantes ao todo, regidos pelo maestro Renato Brito, também celebrado por reger os instrumentistas convidados - Igor Ribeiro e Ricardo Pinheiro na percussão, o professor Weber dos Anjos na viola portuguesa durante os movimentos da suite e também no fundo musical para as falas de João do Crato, o acordeonista Jair Dantas - e mais de 10 intérpretes convidados, entre representantes de várias gerações e nomes emblemáticos da música do Cariri para o Ceará, para o Brasil.
Ao lado de Pingo de Fortaleza no palco, Abidoral Jamacaru, Pachelly Jamacaru, Junú, Luiz Carlos Salatiel, Milla Sampaio, Luciano Brayner, Luiz Fidélis, Fábio Carneirinho, Fatinha Gomes, Janinha Brito, Carlos Rafael e Bárbara Gomes. E haja emoção nesse encontro, reforçado pela beleza e pela simplicidade do figurino evocando os trajes do homem do campo, do sertão, da serra, da chapada, com os coralistas de amarelo, os instrumentistas convidados vestindo azul, o Sexteto de Cordas em roupas marrons, os cantores e as cantoras em destaque trajando branco.
Um espetáculo, muitas vozes
A presença do Coral da UFCA já deixava claro que a estreia do espetáculo, com o nervosismo característico de toda primeira apresentação do tipo, ainda mais uma tão numerosa e desafiadora, seria marcada pelo sentimento de realização e pela emoção das canções de Pingo e Rosemberg a recontar e recontextualizar o Caldeirão do que por eventuais falhas de execução ou dificuldades técnicas. Houve algumas pequenas "traves", naturais em uma produção desse porte, em sua primeira noite, mas nada que comprometesse o fluxo do espetáculo ou se mostrasse aparente demais para o público. Pequenas correções a observar para o espetáculo deste sábado, às 19h, no Centro Cultural do Cariri, no Crato, e para o deste domingo, às 18h, no Cineteatro São Luiz, em Fortaleza.
Outro grande desafio em uma apresentação reunindo tantos artistas, a técnica, colaborou muito para que os diversos movimentos da suite pudessem ganhar o público sem interrupções, ruídos, hesitações ou outros problemas. Airtinho Montezuma, Matheus Coruja e equipe conseguiram garantir que uma união de tantas vozes e instrumentos, em plena praça pública e em condições desafiadoras, pudesse acontecer de forma harmônica, limpa, equilibrada. Papinha Rodrigues, Erivaldo Casemiro e o próprio Pingo na produção cuidavam de costurar os últimos detalhes e de coordenar tantos artistas, tantas vontades, em meio às questões e soluções para os desafios da última hora.
E assim o burburinho dos camarins, atrás do palco, após o final da passagem de som, se transformava em expectativa dos artistas e espectadores. Abraços, desejos de uma ótima estreia, troca de figurino e, pouco depois das 19h, começava a apresentação, a voz grave e a interpretação marcante de João do Crato sobre o texto de Rosemberg, também presente no documentário já disponível no YouTube e no disco que já está nas plataformas, com todas as músicas.
"A região do Cariri cearense já era terra sagrada para os povos originários. Só depois vieram os colonizadores e fizeram guerra contra os Kariri, para tomar-lhes a terra. Encontraram forte resistência"
Pingo e a jovem Milla Sampaio interpretam então a primeira música, "Peregrino da verdade", com o coral já emocionando e apontando como será a noite, com a força do "Chão sagrado Cariri". A melodia típica da tradição popular dá a sequência com Pingo e Junú em "As lições da natureza", ajudando o público, já numeroso, a se chegar também ritmicamente.
E a se preparar para três dos momentos mais emocionantes da suite: o encontro cheio de simbologias de mestra Marinez, Fatinha Gomes, Janinha Brito e Carlos Rafael no movimento 3, "O boi urrou". A voz da mestra a abraçar as colegas, o palco, a praça, marcando cada um, cada uma; a união também carregada de significados de Abidoral Jamacaru, Pachelly Jamacaru, Luiz Carlos Salatiel e Pingo de Fortaleza no quarto movimento, o lindo e forte baião "Para cultivar a flor", com Abidoral iniciando a história e Pachelly firme ao recriar as orientações do Beato José Lourenço ao povo do Caldeirão, as cordas, percussões e vozes tudo enriquecendo; e o quinto movimento, com Luiz Fidélis e Junú, em mais um encontro de gerações, na beleza e no lirismo de "Terra sem males", no encontro entre o grande "hitmaker" do Cariri e um dos intérpretes mais expressivos de uma geração mais recente.
A violenta repressão ao Caldeirão é contada no sexto movimento, "Tudo em pó se transformou", que muda de compasso constantemente, o que, juntamente com os acordes diminutos, intensifica toda a tensão da destruição da comunidade. Não só era preciso, para os coronéis, governantes, latifundiários, poderosos, encerrar aquela experiência de um outro modo de produção e de dignidade ao povo, mas também marcar um exemplo, deixar uma "amarga lição" de que quem quer que tentasse viver de forma diferente da exploração seria brutalmente reprimido, para que ninguém mais viesse a se aventurar, se rebelar, contestar. Luiz Carlos Salatiel e Luciano Brayner encaram o desafio de uma das interpretações mais difíceis, tanto pela letra, quanto pela música, pelo ritmo, pelo conteúdo e pela alma deste momento. Em certa altura, o vento na Praça Padre Cícero carregou a cópia da letra que era lida por Salatiel. O intérprete seguiu seguro, com os versos de cor, até que chegasse a estrofe seguinte com a voz de Luciano.
Passada a tristeza, é preciso celebrar. A continuidade da vida, da luta, das lições do Caldeirão. E assim o público chega mais perto no contraste entre a tensão do movimento anterior e a alegria da peça final da suite, "Flor da aurora", um xote puxado por Fábio Carneirinho, contando ao final com o reforço do retorno de todos os intérpretes ao palco. "Olha essa flor, morena / Bonita, dou pra ti / Cheira essa flor, morena, que eu sou teu colibri... A alegria do espetáculo realizado, da estreia vencida, das belezas oferecidas ao público, após dois dias de ensaios gerais, e por ele reconhecidas na forma de aplausos, emoção, lágrimas e muitos, muitos elogios.
Neste sábado tem mais, no Crato, no Centro Cultural do Cariri, às 19h. E neste domingo em Fortaleza, no Cineteatro São Luiz, com um ônibus com os mais de 40 artistas do Cariri aportando no mais belo cinema de rua do País. O Cariri vai à capital, com muito menos frequência do que deveria e poderia. Oportunidade única e imperdível, neste Dia das Mães, para um encontro de força, lirismo, história e sentimento.
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